COMO
SERIAM JOVENS AUTISTAS DIVIDIREM O MESMO TETO?
A
abordagem do autismo nunca tinha sido tão explorado quanto antes, e a prova disso está na série que vou
comentar aqui em homenagem a data do dia 02 de Abril, onde é comemorado o Dia Mundial da Conscientização do Autismo. Trata-se de Nosso Jeito de Ser(As We See It,
EUA, 2022) da Amazon Prime Vídeo.
A
série conta a história de um trio de
jovens autistas formado por Jack(Rick Glassman), Violet(Sue Ann Pien) e
Harrison(Albert Rutecki), que são companheiros de quarto, dividem um
apartamento e são orientados pela Mandy(Sosie Bacon), a cuidadora contratada
pelas famílias dos três.
Cada
um deles apresenta suas particularidades, Jack é o que se mostra mais retraído do trio, e as
vezes tem um temperamento explosivo, e irritadiço, trabalha como web designer para uma livraria,
onde lida com um chefe muito casca-grossa como Austin(Robby Clater).
Cuja
reação irascível faz ele explodir e ser demitido, mais depois é readmitido.
É muito metódico, tem dificuldades de demonstrar suas emoções. Ainda mais num
momento delicado em que ele sendo órfão
de mãe, é criado pelo seu pai Lou Hoffman(Joe Mantegna) que anda com a saúde
delicada por conta do câncer, o que deixa Jack preocupado quanto a ele morrer a
qualquer momento sem ter conquistado sua independência financeira. E justo
nesse momento que ele conhece no hospital a enfermeira Ewatomi(Délé Ogundiram),
com quem ele tem uma aproximação e o começo de uma relação amorosa.
Já
Violet é de temperamento mais esfuziante, trabalha como atendente de um fast
food. Sonha em querer namorar, mas é impedida pelo seu irmão Van(Chris Pang), o
único familiar que cuida dela, já que ela é órfã. Que vive controlando
os aplicativos do relacionamento
do seu celular. Violet chega a ter um
caso com um sujeito que ela conhece do trabalho, que a decepciona e ela
reagindo com um piti dentro da lanchonete acaba sendo demitida.
Quanto
ao Harrison, cuja característica é ainda de um rapaz imaturo que não consegue se expor na rua, tem seus
medos, suas manias, desse trio ele é o
único que não tem emprego, porém, vem de
uma base familiar que não é tão disfuncional quanto a de Jack e
Violet. Cujos pais, inclusive, são muito ricos e moram numa mansão. Poderia descrever, que
desses três ele é o único privilegiado por ter uma base familiar sólida, coisa
que os pobres coitados do Jack e da Violet não apresentam.
Porém,
eu estaria sendo hipócrita de descrever dessa maneira, mesmo porque o Harrison
não recebe tão constantemente a visita dos pais na sua residência como ocorre com Jack que recebe a visita do
pai e da Violet do seu irmão. Aliás só conhecemos a família do Harrison lá pela metade da série quando ele acompanhado da Mandy visita a
mansão da sua família e conhecemos
também sua irmã.
Fora
que também o Harisson lida com o preconceito capacitista e autistofóbico ocasionado pela sua vizinha, mãe de um menino
chamado A.J(Adam James Carrillo), que o impede de interagir a ponto de chamar a
polícia. Seria o mesmo que pensar que se
o Harrison fosse preto, mesmo sendo rico, mascaria o racismo que ele pudesse
sofrer.
A
série é uma produção de Jason Katims, que mescla comédia com drama, contendo 8
episódios, baseada na série israelense On The Spectrum(Israel,
2018).
Com
o elenco contando com o trio protagonista formado por autistas de verdade. Com Rick
Glassman como Jack, Sue Ann Pien como Violet e Albert Ruteck como Harrisson, em cena eles mostram um bom entrosamento e uma
ótima química para representar o drama de seus personagens de uma forma
bastante verossímil e realista, onde cada um aqui ao lidar ao seu modo com superações típicas do espectro procuram enfrentar
como a introversão por exemplo, a forma como eles retratam não fica parecendo uma tentativa piega de parecer um engessamento de perfil heroico para
eles criarem uma romantização sobre o autismo. Aqui eles não apresentam uma
unidimensionalidade rasa, também tem suas outras camadas envolvendo os
complexos dramas adultos. Houve um
momento em que dos três, a Violet foi a
que mais me preocupou inicialmente, pelo fato de que como era a única
representação feminina do trio e tinha momentos que ela demonstrava uma típica visão meio conto de fadas
de querer encontrar um príncipe encantado e falando abertamente do seu desejo sexual, aquilo chegou a me fazer
parecer uma forçação de barra que poderia fazer ela cair na caricatura do estereótipo racista da objetificação erótica
da mulher oriental. Porém, a maneira
como sua interprete Sue Nan Pien
defendeu foi me surpreendendo e evoluindo ao longo dos
episódios após um lance que teve com um sujeito do trabalho, que a decepcionou
após ela transar com ele. Do mesmo jeito que Rick Glassman como o Jack e Albert Ruteck como o Harrison foram também aos poucos evoluindo e
mostrando suas outras camadas, principalmente ao lidarem cada um com a
afetividade amorosa e desejo sexual.
Mesmo porque é preciso levar em conta que no autismo mesmo há
graus variados de dificuldades motoras, intelectuais e de comunicação. Onde de
todo jeito o indivíduo sempre vai ser visto de uma forma banal e
discriminatória pela sociedade. Principalmente
se o seu comportamento mesmo depois de adulto ser visto como eternamente infantilizado de um sujeito assexuado, ingênuo
e puro como um anjo azul.
Porém,
ignora-se a realidade crua e mundana que existem autistas que vivem em lares
familiares disfuncionais e outros em família humildades que não tem condições
de pagar tratamentos terapêuticos alternativos para seus filhos conseguirem
evoluir. Dentro dos limites deles lógico. E esses tendem a caírem no caminho
perigoso da criminalidade, quando você acha que não, eu vi o noticiário de um menino
autista de 10 anos que quase cometeu suicídio com tanta medicação que tomou por
não aguentar o bullying na escola. Isto é muito preocupante. Ou mesmo do menino autista assassinado pela
mãe.
Além
do trio protagonista, outros atores que compõe o núcleo de apoio e de grande
importância para os arcos narrativos de
cada um do trio protagonista. Mostrando também outras camadas, que também não são
unidimensionais. Joe Mantegna, famoso por fazer comédias, já tinha assistido
criança na telona ele fazendo o ladrão
que sequestra um bebê em Ninguém Segura Este Bebê(Baby´s Day Out,
EUA, 1994), na série defende brilhantemente o papel do Lou, homem viúvo, pai do
Jack, sujeito que o tempo todo fica preocupado com ele, principalmente ao lidar
com seu comportamento muito centrado demais, correto demais ou muito irritadiço e como procura ser
compreensivo, mesmo quando tem gente da
sua própria família que o crítica por
ele não saber como educa-lo. A forma como ele pincela o papel, em nenhum
momento procura criar uma representação heroica de romantizar a figura que
gente de fora cria muito da família dos autistas de um pai guerreiro, muito presente na vida do seu filho com
necessidades especiais, que não abandona tal. Mas ele também mostra que como
qualquer ser humano, vive esgotado da
vida, principalmente ao lidar com o drama da sua frágil saúde. O que deixa Jack
desesperado, já que não consegue imaginar como vai ser lidar quando ele partir
e não conquistar sua independência financeira. Além de Joe Mantegna, destaco
também Chris Pang, representando o Van, irmão mais velho da Violet. O seu
desempenho no papel é admirável,
principalmente na forma como ele pincela a figura de um irmão mais velho que assume o grande desafio de ser a figura paterna e materna da ingênua da Violet, depois de ambos ficarem
órfãos e ele ficou encarregado de ser o tutor dela. Cuja relação nem sempre é
perfeita, já que a maneira como ele a exageradamente a superprotege, principalmente
em proibir os aplicativos de namoro dela,
faz ele as vezes parecer um babaca. Ele também não o apresenta com uma
característica unidimensional, com um elogiado perfil heroico que se espera de todo irmão mais velho.
Mostra também como ás vezes, ele vive
esgotado emocionalmente em procurar
amenizar a barra da Violet, a ponto daquilo até afetar a sua relação
amorosa com Selena(Vela Lovell), com quem ele namora no começo da história e ela
resolve terminar com ele depois que a Violet compartilhou com ela um segredinho
do encontro que ele marcou com um namorado para ter sua primeira transa. O que
o deixa em desespero, já que outras mulheres com quem Van já namorou terminaram
o relacionamento, justamente por conta da situação barra pesada que ele
precisava lidar com a Violet. E nesse desespero todo, ele termina se envolvendo
amorosamente com a Mandy, a cuidadora contratada pelas famílias do trio para
servir como orientadora deles no apartamento onde dividem juntos. A Mandy foi muito bem defendida pela Sosie
Bacon, cujo desempenho no papel é elogiável. Principalmente em defender o papel
de uma mulher que lida com a difícil
missão de orientar os três jovens
inexperientes da vida que vão dividir o mesmo teto das quais as família de cada
um as contratou para isso, que carregam o estigma do espectro que é o autismo,
uma característica invisível. Que não tem cara, mas mesmo assim a hipócrita sociedade neurotipica fecha os
olhos para a vida banal que o autista sofre. Algo no nível A Vida Como Ela
é..., mas não no sentido rodrigueano.
Ao mesmo tempo que Mandy precisa lidar com os problemas pessoais com o
seu marido que a vê pouco e entra num dilema de ao ser aprovada para ingressar
numa faculdade se abandona ou não o trio. Apesar dela não figurar como a
protagonista, ainda assim, ela assumi bem a função do arco narrativo deles ser uma fio condutora do telespectador ao transitar
entre diversos personagens da série, não só entre o trio protagonista, mas
também quando individualmente conversa com cada familiar e é com ela que
conhecemos a família do Harrison.
A
maneira como a série retrata o modo de vida social desse trio de jovens
autistas dividindo o mesmo teto. Pode parecer para nós autistas brasileiros, um
retrato fora da realidade, principalmente para os que assim como eu que tenho Transtorno do Espectro
Autista ainda moram na casa dos pais. Uma quase utopia.
Porém,
dentro da realidade estadunidense isto é bastante verossímil, porque lá eles já
tem esse hábito de dividirem casas para alugar, para terem com quem dividir os
custos com gente que aceitem serem seus inquilinos. Uma solução que tem suas vantagens e desvantagens,
principalmente nas dores de cabeça deles arrumarem como inquilinos gente de mau caráter como os psicopatas apresentados na
minissérie documental da Netflix Moradores Indesejados (Worst
Roomate Ever, EUA, 2022). Desses vermes eu não tenho a menor pena.
Fora
que o trio protagonista de jovens autista
também representam uma típica característica verossímil do costume
familiar estadunidense, ainda que não
seja mostrado na série de quando os filhos vão crescendo, eles saem de casa e vão
construindo suas próprias vidas sem a família presente. E o Harrison é o que
mais simboliza essa característica, visto que sua família aparece pouco na
série.
Digo
isso pela própria experiência de quando eu hospedei há muitos anos uma intercambista americana, estudante de
Medicina na Universidade de Yale, que veio para estudar autismo. Onde seu
campus não ficava localizado em sua cidade natal que era Chicago, onde lá ela
dividia o dormitório com uma colega de quarto.
Mais
ou menos para vocês entenderem o retrato que a série apresenta do trio
protagonista de jovens autistas tem verossimilhança com a realidade do modo de
vida social dos EUA. Coisa que aqui no Brasil não temos.
Acredito
que se essa série fosse produzida no Brasil, com certeza muitas famílias de
autistas que dirigem instituições que prestam auxílios pedagógicos alternativo
aos autistas se indignariam, a ponto de acusarem essa produção de prestar um
desserviço a causa ao romantizar a representatividade do autista.
Principalmente
por eles apresentarem o trio lidando com as complexas abordagens sobre desejos sexuais e
afetividades amorosas. Temáticas que já são tabus, mesmo para neurotípicos,
imagine para o autista, cuja imagem assimilada ao estereótipo dele ser
um indivíduo de comportamento infantilóide
já causa preconceito por acharem que isso é culpa da péssima educação familiar,
e somados a sua dificuldade de interação
social e de comunicação, ás vezes quando se comunica usa de um vocabulário
restrito com assuntos de seu interesse, aquilo dá impressão dele ser visto como um sujeito
ingênuo e assexuado o que já ocorreu quando uma novela da Globo chamada Amor à Vida(Brasil,
2013-2014) causou ao mostrar uma jovem autista chamada Linda(Bruna Linzmayer)
namorando e beijando um rapaz neurotípico que a pede em casamento. Isso gerou
tamanha revolta entre muitos grupos de mães de autistas aqui do Brasil que dirigem instituições respeitadas,
por acharem aquilo muito fora da realidade e gerou uma repercussão negativa. Motivado
justamente pela visão sociocultural aqui ainda ser muito conservadora cristã. Imagine
se esse autista se descobrisse um LGBTQIA+ e resolvesse fazer uma cirurgia de mudança de sexo, como ocorreu com um rapaz autista que conheço
pelo Facebook que virou transsexual, e adotou um nome feminino. E ele não é um
único caso, tenho uma amiga
fonoaudióloga que atende um autista que virou transsexual e que me compartilha
como foi o processo psicológico dele se aceitar no novo corpo e de como as
pessoas que o conheciam rapaz, se acostumarem com ele mulher, ela mesma
confessa que demora a se acostumar a isso.
O
que posso concluir de tudo isso é o
seguinte, o autismo ainda é visto como um grande tabu social, mesmo que hoje
ajam meios de como se informar para conseguir um diagnóstico. Porém, diante de
muitos fatores complexos que envolvem as diferentes camadas do espectro é preciso tomar certos cuidados em relação a rótulos ou mesmo a pré-julgamentos sobre os
comportamentos sociais que eles tem.
Não
podemos confundir o autista ter um repertório de interesse restrito na
comunicação, com alguém com transtorno obsessivo compulsivo, ou com um cara
stalker. Do mesmo jeito que não podemos confundir o fato do autista com suas
características dificuldades de socialização, de que ele por não namorar é um
sujeito assexuado. Mesmo porque até mesmo pessoas assexuadas se casam e tem
filhos.
E
nunca em hipótese alguma, podemos confundir o autista como pessoa supergênio,
como nerd e principalmente como uma eterna criança ingênua que é um ser cheio
de pureza.
Nenhuma
dessas rotulações ao autista vão
mascarar o preconceito capacitista e a discriminação autistofóbica sobre ele.
Termino
aqui com um trecho de um poema de minha autoria que me descreve bem como é a
minha sensação quanto ao meu espectro.
Eu
sou autista?
Sou
sim senhor,
Mas
não sou nenhum santo, sou como qualquer pessoa dita normal, um sujeito cheio de
virtudes e de defeitos. Sou um cara muito amoroso com quem gosto, ao mesmo
tempo que sou grosseiro com quem vive me estressando. Me incomoda as vezes as
constantes romantizações
sensacionalistas que fazem a respeito do meu espectro, principalmente
quando sai notícias de sites sobre a
superação de alguém no espectro se saindo bem sucedido, numa faculdade ou mesmo
no trabalho dentre outros exemplos para nos tornar espelhos para os outros.
Para mim fica a falsa sensação de mitificação, como se nós fossemos os seres
mais puros do mundo. O que para mim não diz respeito em nada.
“Eu
sou autista?
Sou
sim senhor,
Mas
não me considero a pessoa mais insociável pela descrição estereotipada que me
muita gente desses profissionais que trabalham com autismo tanto batem na
tecla.
Sou
autista?
Sou
sim senhor,
Diante
de tudo isso que descrevi, posso concluir dizendo que o fato de eu ter o meu
espectro, posso descrever simplesmente:
Eu
sou autista.... mas não sou vira-lata.”