Nestes tempos em que temos visto tanta pregação de ódio aos
diferentes com toda esta polarização política neste tempo conturbado de eleição
presidencial em um tenso cenário de muitas incertezas. É bem apropriado comentar de
um filme que traz este tipo de abordagem de uma forma até sutil como é no caso
do cubano Morango e Chocolate (Fresa y Chocolate, Cuba, Méx, Esp, 1994) dirigido por Tomás Gutierrez Alea(1928-1996)
em conjunto com Juan Carlos Tabío. O enredo de Morango e Chocolate ambienta-se
no ano de 1979, na capital Havana. Gira em torno do jovem universitário
David(Vladimir Cruz), ainda não muito conformado com o fim de seu noivado.
Conhece um dia, numa sorveteria Diego(Jorge Perrugorría), um artista
assumidamente gay e descontente com o regime castrista.
Diego tenta diversas vezes se insinuar para David tentando
obter alguma conquista, só que ele se mostra resistente. Será nesse encontro
casual, o ponto inicial para o desenvolvimento da trama.
David se sentindo forçado resolve acompanhar Diego até sua
casa, lá fica admirado e ao mesmo tempo espantado com a quantidade de livros
que ele adquiriu nas prateleiras da sua casa. O impressionante detalhe explorado nesse momento do filme é quando o estudante universitário David
explica para Diego que boa parte desses
livros ele nunca tinha lido e nem muito menos ouvido falar, porque eram obras
proibidas, censuradas pelo sistema. Será nessa e em muitas outras cenas mais
para frente de David visitando a casa de Diego, que será observado uma sútil
crítica de como a população cubana lida rotineiramente com a opressão imposta
pela ditadura castrista.
E um desses momentos muito frequentes no filme, é quando
Diego ao ler um dos livros em voz alta para David, liga um som com toca-fitas
em um volume altíssimo, o motivo era para os vizinhos não ouvirem aquela sua
leitura, porque se o ouvissem os denunciariam para o Governo.
Também será no decorrer e desenrolar do filme que irá
aparecer uma terceira protagonista Nancy(Mirta Ibarra). Uma mulher cuja
profissão não é bem esclarecida, há quem pense que ela se trate de uma prostituta
como bem sugere uma cena dela recebendo grana de uma garota de programa. Tudo
em torno de Nancy é um enigma. Vai ser a Nancy a responsável por conquistar o
coração de David, coisa que Diego não consegue, mas no entanto Diego consegue
obter uma conquista muito melhor de David, que é a amizade e o respeito. Especialmente
quando este resolve defende-lo de uma briga onde ele sofre uma imensa
discriminação por sua orientação sexual.
A trama do filme de Alea pertence ao gênero de uma comédia
dramática, que fez história por ser o primeiro filme a representar Cuba na disputa do Oscar de 1995 a categoria de melhor filme estrangeiro, onde perdeu para o russo O Sol Enganador. Venceu vários prêmios em festivais, entre eles o Festival de Berlim como o Teddy, Urso de Ouro
e o Urso de Prata e o Prêmio do Público e o Kikito de Ouro no Festival de
Gramado. Esse filme foi o penúltimo
dirigido pelo Alea, que um ano antes de morrer dirigiu Guantanamera(1995). Considerado o nome de maior expressividade na
ilha caribenha, que além desse também carrega um extenso currículo de outros
bons filmes já dirigidos.
Em Morango e Chocolate,
dá para perceber, alguns interessantes detalhes do texto que moldam e pincelam o retrato incoerentemente mascarado de um país que há 50 anos é regido por um
sistema de governo que teoricamente segue os princípios do socialismo criado
por Karl Marx(1818-1883), onde defende os princípios de uma sociedade
igualitária e mais justa, mas que na prática a coisa é completamente diferente.
Os três protagonistas do filme: David, Diego e Nancy pincelam
de maneira sucinta, o retrato mascarado da realidade envolvendo esta ilha
caribenha, admiradas por muitos como bom exemplo no sistema educacional, na saúde e
também no incentivo aos esportes.
Mas que apesar de ser um bom exemplo, também tem lá suas
imperfeições que são ignoradas. O universitário David, por exemplo, faz uma
sutil crítica a maneira como o sistema educacional no país é ao mesmo tempo
exemplar, fazendo com que a ilha caribenha tenha o menor índice de
analfabetismo. Também carrega uma característica dúbia em relação quanto ao
governo só permitir que as escolas ensinem o que seja favorável para eles, o
que não for é proibido. Isso explica o motivo pelo qual David ficou bastante
surpreso ao olhar e tomar conhecimento através de Diego de livros que ele nem
imaginava existirem. Diego pincela um retrato curioso, representando uma camada
da população da ilha que poucos conhecem ou nem mesmo imaginam ocorrer nesse
lugar que segue há 50 anos um sistema político que teoriza a igualdade. São as camadas dos gays que lidam com o
preconceito. Difícil acreditar? Mas, infelizmente o filme aborda através de
Diego a visão dúbia que até num país como Cuba também ocorre a prática de
preconceito. E no caso do Diego, só o fato dele ser gay o tornar alvo de
discriminação social, o que hoje é
denominado de homofobia.
E por fim, a Nancy pincela um retrato curioso de uma camada
social cubana, como descrevi acima, ela
é bastante enigmática e a explicação para isso está no fato da personagem representar
um retrato de uma agente do Governo Cubano
infiltrada em determinados bairros para colher informações sobre supostos
subversivos, e o Diego era quem ela tinha a missão de ficar observando. A
primeira vez que Nancy aparece no filme é na curiosa cena dela sofrer uma queda
de pressão na rua e é socorrida pelos dois que a colocam numa ambulância e ao
chegarem num hospital para onde Nancy é atendida, ocorre uma outra visão
crítica e cômica a respeito da incoerência
do país que representa o melhor exemplo de competência na área da saúde,
exportando até médicos para outros países, em seu próprio território os
hospitais viverem numa carência e escassez tecnológica, como bem é mostrado na
cena de Nancy ao ser atendida para receber uma transfusão de sangue, e para
Diego e David conseguirem isso descobrem que o grande obstáculo é a falta de
aparelhos e seringas necessárias para isso.
Também é curioso ver uma cena onde Nancy faz uma reza para os
santos, se benzendo em banho de água benta pedindo para ter David aos seus
braços. O que representa uma interessante visão de mesmo o país sendo regido há
50 anos por um regime totalitário ateu, ainda existe uma boa parte da população mantém
preservado a fé e ainda alguns costumes religioso de mantê-la viva, como faz Nancy. E a própria
mostrar que nesse país também se pratica a prostituição, apesar de ser exemplar
em tudo.
Tenho de admitir que Morango
e Chocolate foi o primeiro contanto com um filme cubano. Na primeira vez que assistir a este filme que foi numa sessão
alternativa promovido por Antonino Cordorelli no projeto Café com Cinema no auditório
da antiga livraria PotyLivros ocorrido
em 2012. Naquela ocasião, durante os debates ocorrido após o fim da sessão tanto o coordenador do evento quanto alguns
presentes haviam compartilhados suas
experiencias de quando foram visitar Cuba por motivos de trabalho e lá relataram
de terem se deparado com situações idênticas que sucintamente pincela, a outra
face da Cuba castrista. Foi bastante
curioso ouvir relatos, seja da plateia, ou mesmo, do próprio Antonino
Cordorelli, o responsável pelo evento. Alguns detalhes curiosos sobre como a
população lida diariamente com a opressão desse governo totalitário, e uma das
maneiras como eles procuram driblar como o filme bem mostra em tom de crítica
muito sutil na cena de Diego lendo para
David em voz alta é ligando o som alto para os vizinhos não ouvirem e o
denunciarem. Foi durante a discussão, que ouvi os exemplos das populações
driblarem seja em espaço público ou
mesmo dentro do lar através de códigos.
Morango e Chocolate trata-se de uma primorosa obra-prima
para a gente analisar as coisas que a gente acredita como verdade com outros
olhos. E principalmente refletir que o acesso ao conhecimento da maneira que
for nos abre a cabeça. É um
interessante filme que serve para a gente conhecer e entender um pouco da
realidade cubana, independente de qual ponto de vista for analisado. Uma coisa
é certa: Morango e Chocolate defini
Cuba por ela mesma.
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